27 de novembro de 2015


Graciliano Ramos

Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

4 de agosto de 2015

Tabacaria

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

20 de dezembro de 2014

A quem se molha

De pequeno me descriei com o que aprendi e tudo que desaprendi veio da rua, da árvore, do rio, da palavra. Do folclore e do gentio. Com a palavra escrita que não falava, caí, com ela demorei a me deitar. Restou a chuva sacra respingandinho naquela porta velha emperrada de madeira envernizada. Coitado do menino que ficou atrás da porta velha emperrada, nem os pingos viu. Pobrezinho, não desaprendeu nada nessa vida.
E eu corri. Corri de formigas e de discos voadores. Construí hidrelétricas e ônibus espaciais.
E eu cansei. Cansei de pássaros e de gritos histéricos. Construí ilusões e cataventos.
Voltei logo quando a lua crescente vinha rasgando as nuvens, pensei ser um sinal, como aquele que me contaram dos reis magos, pena não lembrar o nome dos reis agora, na verdade queria ser um deles só pra ter um camelo e chamá-lo Gibraltar.
Quando cheguei, cansado, descobri que havia saído pelos fundos, como todo menino. E ele estava lá do mesmo jeito, sentado feito índio, o menino. De arranhão, braço quebrado, unha roxa, nem sinal.
Quem sabe era por isso que ele nunca saiu escondido, não era medo de pular o portão, era porque eu sempre voltava com os bolsos cheios de histórias e pitangas. A essa altura não há mais histórias, apenas memórias, ah o cheiro de pitanga molhada!
Pobrezinho, não desaprendi nada nessa vida.

10 de dezembro de 2014

Em teus olhos corre um rio Jordão que me batiza em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amor!

18 de setembro de 2014

Poema em linha reta

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, 
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, 
Indesculpavelmente sujo, 
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, 
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, 
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, 
Que tenho sofrido enxovalhos e calado, 
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; 
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, 
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, 
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, 
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado, 
Para fora da possiblidade do soco; 
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, 
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, 
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho, 
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, 
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 
Quem contasse, não uma violência, mas uma covardia! 
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam. 
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 
Ó príncipes, meus irmãos, 

Arre, estou farto de semideuses! 
Onde há gente no mundo? 

Então só eu que é vil e errôneo nesta terra? 

Poderão as mulheres não os terem amado, 
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca! 
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, 
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? 
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, 
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

19 de julho de 2014

A anistia dos fugitivos

Cintilações ofuscam a saída de emergência pela porta ao final da escada, assim como as sirenes encobrem gritos de socorro. Tal como ao anoitecer, a revoada dos pássaros vem dissipando a capacidade humana de prever movimentos circulares, presentes nas baterias antiaéreas que agora são carregadas. Cruzam o céu atestados de óbitos anônimos - assinados por um cego que pode escrever, um mudo que pode ordenar, um surdo que pode consentir - de quem ninguém conhece.
O combustível dos geradores do hospital acabou. O sistema reserva falhou. Sistematicamente os equipamentos cessaram. A cada minuto um grupo aparece correndo para um lado, outro na direção contrária, sucessivamente. Se o impacto não acontecer aqui, acontecerá ali.
O prelúdio é composto por um carrilhão natural ao longo dos campanários da cidade, que retinem uníssonos uma marcha fúnebre em sinos centenários. Todos morrerão com honras militares, sob uma salva de tiros. O diálogo dos projéteis se encarregará do rito para encomendar as almas. Cada idiossincrasia é quebrada no desespero da miséria humana frente ao fim. Laissez faire, laissez aller, laissez passer.
Lembra-se do quanto tinha a necessidade de que o ouvissem, de que o aprovassem, ao menos o observassem? É agora que precisa disso, porém ninguém possui tempo para olhar para o lado. Quem triunfará? Então o último suspiro. O véu se rasgou. Ouve-se um sussurro: “és fraco, és fraco, és fraco. Cruzes. Cruzes”.
Todo o anacronismo é aceito em meio ao caos.
Houve um tempo em que paladinos se encarregariam da batalha, apenas eles. Ao que parece, se as histórias ainda fossem contadas pelos homens e suas memórias, lendas sobre o nosso comandante assustariam os selvagens invasores. Este homem, diziam meus avôs, ia para a mata onde estava o acampamento inimigo, sempre em noites enevoadas, encontrar algum sentinela. Levava uma pedra e uma faca. Com a pedra chamava a atenção do futuro morto atirando-a contra alguma árvore. Com a faca dilacerava seu pescoço. Por isso ficou conhecido como sorrateiro. Até morrer - vítima de vidas sintéticas, botões e cliques - por uma carta envenenada com ricina.
Após as primeiras explosões ficou atônito. Surdo e cego temporariamente. Imagens desfocadas do passado foram passando por si. Lugares, pessoas, sabores e cheiros que não mais fazem parte da sua vida. Instantes de paz sem ver e sem ouvir, agachado junto à fonte da praça central que foi até onde conseguiu correr no caminho para a casa. Parecia haver acabado, até a chuva lavar seus olhos. Voltou a ver a barbárie exposta nas ruas e desejou estar cego novamente.
Na corrida carregava chaves, porém as portas não alcançava. Voara como Ícaro, e tal como ele tentando deixar Creta, o calor, não do sol, mas das bombas, desmancharam suas asas. Foi-lhe amputada a possibilidade de fugir, pois se fugisse riria. Riria olhando para trás vendo si próprio escapar da desgraça. Fará agora companhia a mulher de Ló, em uma cidade destruída, por nós mesmos, por eles mesmos. Viverá impossibilitado de fugir como Ló. Entenda, mesmo assim viverá fugindo sem covardia. Fugindo. Fugindo como a vida foge da morte.

Agora salvo, saí da toca. Da fonte já não jorra água. Do carrinho de doces já não saem guloseimas. Da árvore já não se ouve o trinado dos pássaros. As mesas de xadrez quebradas da praça agora deram um novo perfil para as calçadas, que até poderiam ser um estúdio de arte contemporânea. A poeira ainda alta me faz lembrar o caminho para o sítio na estrada de terra batida, cercada por um milharal interminável num labirinto linear. O rangido da placa metálica da barbearia do outro lado da praça, que balança continuamente com o vento nesse agora silêncio colossal, embala-me no mesmo som de uma rede de algodão fixada na garagem de casa, fazendo o papel do pêndulo de um relógio marcando o tempo, que sem o embalo do meu corpo, porque adormeci, parece passar cada vez mais devagar. Até parar. Até o tempo parar.
“Procurarás em vão morder-lhe o calcanhar”. Procurou em vão. Acordei ao final da tarde quando o beiral não mais conseguia impedir que os raios impiedosos do sol baixo me queimassem os olhos. O céu sangrava. Fiquei observando até a escuridão da noite estancar o vermelho. A serpente também fugiu.
Seríamos nós Jacó ou Ismael? Menelau ou Páris? Milcíades ou Xerxes? Alexandre ou Dario? Balduíno ou Saladino? Joana D’Arc ou Guillermo de la Pole? Wellington ou Napoleão? (...)
Seríamos nós Vida ou Morte?
Saberá quando voltar a crescer capim ao redor dos balanços das crianças, quando perder a hora para o trabalho, quando cair depois de uma bebedeira, quando se cortar na cozinha. Há sangue correndo.
A morte tocou-me, mas não me mordeu.
Já não somos apenas bípedes, Schopenhauer. Se desiludiu-se não viverá recluso, voará fugindo e a cera aguentará até encontrar nova terra, ó homens do mar, que não riem na partida, apenas na chegada.
Não se pode vencer o invencível. Se não dói, esta é a anistia, então deleita a ferida do opróbrio.

27 de maio de 2014

O escritor vive

Jorge Luis Borges

O escritor vive. Ninguém é escritor das oito ao meio-dia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre, e se vê continuamente assaltado pela poesia. Assim como o pintor é assediado pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo estranho mundo dos sons, o escritor deve pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida alguma coisa que possa aspirar à eternidade.

14 de dezembro de 2012

Dilúvio

Invadiu a casa. Antes disso frequentou a varanda por anos, em silêncio. Até que um dia voltou a chover depois de tanto tempo, chuva outrora recorrente, hoje recorrente. Inundou a varanda, então abriu a janela e entrou. Do tumulto, silêncio. Invadiu a casa. Isso há 500 dias. A casa, em silêncio. Fiquei tonto no dia da invasão, rodou comigo por alguns minutos. Aos poucos o silêncio tomou forma e já dizia devidamente contextualizado. A primeira providência foi encontrar mais uma cadeira para a cozinha. Uma a mais, um a mais, foi sobrando pouco espaço para o tumulto, que não acreditava no que estava acontecendo. O silêncio argumentava que não precisava dizer, era inevitável. Inefável. A cozinha do café sob medida. A sala do sofá apertado. O banheiro dos xampus tampados. O quarto dos travesseiros desconjuntados. O agora – desde sempre – nosso cômodo do amor guardado. Tranquei nosso oásis. Não há chaveiro, bombeiro, bandido, que abra esse cômodo. Sem comodismo, é cômodo estar no cômodo. É autossuficiente. Tudo foi plantado corretamente. Esmerado. Hoje germina amor, colhe felicidade. Isolados. O tempo escorre rapidamente pela janela levando luas e sóis, estações e anos, enquanto a chuva ainda lava a varanda. Como Ziusudra sobreviveu e depois mostrou a Gilgamesh sua imortalidade sobre as águas. Aprendeu que isso não é possível para todos.
Num dilúvio de 500 dias e 500 noites.